domingo, 26 de maio de 2013

Água

Quando eu era pequeno, no sítio onde eu vivia, a gente tinha uma cisterna bem grande. Lembro-me de ver aquela lage de cimento sem entender o que era. Alguém tinha me dito que era pra guardar água...Mas água de onde?
Um dia choveu bastante forte. Vi um certo rebuliço perto da cisterna. O filho da empregada subia no lado de fora da casa para ajeitar as calhas que deviam aparar a água do telhado. Depois tinha que pegar um dos canos para levar a água até a cisterna. Mas, antes, era necessário esperar um pouco para que a água primeiro lavasse o telhado e  depois, colocar um pano na boca do cano pra filtras as sujeiras grandes das telhas.
Foi nesse dia que fiquei sabendo o por quê das cisternas e das calhas ao redor da casa.
Muitas vezes não tinha água na torneira e tínhamos que tirar água dali.
A empregada pegava um balde feito de latas de óleo do pajeú e colocava num pote enorme, maior que eu, que ficava num dos cantos da cozinha. Daí cobria o pote com um pano de prato e usava uma tampa velha de alumínio para segurar. Em cima do pote ficava os canecos pra gente pegar água direto dele.
O pote era grande e frio e eu adorava ficar abraçado nele nas tardes quentes. Eu e os cururus que se abrigavam embaixo dele...

Chuva

A chuva era um dos eventos mais marcantes durante minha infância. Ouvia-se o barulho das pessoas gritando de alegria por toda a cidade.Esperávamos um pouco para ver se ela ia durar e, então, corríamos para nos encontrar na pracinha em frente lá de casa. Claro, o objetivo era achar um lugar bom para tomar banho...
Saíamos correndo pela cidade, aproveitando cada telhado que se transformava em cachoeira. Íamos andando e parando em cada biqueira...
Mas o melhor era a igreja. Parecia que todos os meninos e meninas da cidade instintivamente corriam para lá. Dizíamos "Vamos tomar banho nos jacarés da igreja!!". Alguém de fora cidade jamais iria entender essa imagem. Mas a ´verdade é que a água do telhado da igreja era drenada pra fora por umas biqueiras em forma de jacaré...
Eu não entendia bem, na época, por que tanta alegria por causa da chuva... Na maioria das vezes a chuva durava poucos minutos...
Mas para mim era um milagre. Todo mundo falava tanto de céu, especialmente naquela época que milhares de outros meninos morriam diariamente por causa da seca e da fome. Mas para mim, água era a única coisa visível que vinha do céu. Quando olhava pro céu não procurava por Nossa Senhora, procurava por água. De algum modo, a água subia ao céu e fazia aqueles tufos de algodão que a gente via passar. 
Quando é que São José ia mandar água de novo?

Morte

A alguém que sobreviveu à morte de alguém só posso oferecer minha tristeza.
Ninguém nunca me ensinou como oferecer condolências aos outros na ausência de fé. Condolências parece até sinônimo de oferecer fé em apoio ao outro. Sinto um constrangimento enorme quando preciso ir ao enterro de alguém ao ver todas as pessoas rezando e reforçando uns aos outros a fé de que algo diferente do que está no caixão está subindo em algum lugar e sendo recebido por alguém...
Sinto-me como se eu mesmo fosse uma interrupção nessa cadeia e evito trocar qualquer palavra nessa hora ou, simplesmente, digo sim a tudo que ouço, por mais absurdo que me pareça.
Mas também eu fico pensando como os velórios seriam terríveis se não fossem um momento de compartilhar esperanças - afinal continuamos vivos e algo em nós foi perfurado...Um pedaço de nós foi levado e parece que precisamos pôr algo no lugar.
Só não entendo por que esse algo deva ser "Deus"...

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Amores e outras...

Realmente, não sei cumprir muito bem o meu papel de apaixonado. Talvez seja por isso que eu esteja sempre à beira do paraíso e tente ser feliz ao vê-lo de longe.
Coisas que, me disseram, se aprende com a idade...Mas que mentira...
Talvez meu futuro seja mesmo o de ser o porteiro do paraíso, mas cego pras coisa lá de dentro.
Talvez meu paraíso seja apenas a porta do paraíso.
Mas olho e em volta e não vejo ninguém...
Só eu.
Porta de paraíso desacompanhado.
Sem olhos pra dentro e pra fora somente o horizonte.
E, em volta, meu pequeno pedaço de eu mesmo.

Sexo e religião

Quando nos encontramos foi que eu vi o quanto ele era grande. Alto, largo, pesado, forte, mas com algo no olhar que parecia cativar - ou, talvez, seja algo na minha cabeça que fazia qualquer coisa nele de cativante ou infantil ou doce...
Conhecemo-nos pela internet, claro. Um papo rápido, claro. Uma rápida troca de fotos, claro.
Claro, fomos a um motel...O papo rápido não permitia que no encontrássemos para uma cerveja ou um sorvete ou filme...Não queríamos ser amigos - se você está me entendendo!
Ao chegarmos na cama e começarmos a tirar nossas roupas comecei a vislumbrar algo de sua beleza interior, tatuada em sua pele branca como leite. Havia tatuagens por todo o peito...Mas elas não chegavam aos braços, eram bem discretas sob a camisa - mas sem a camisa elas eram realmente gritantes!
Quando ele se deitou cuidadosamente sobre mim eu pude finalmente ler o que estava escrito em seu peito com letras garrafais: "SOLDADO DE CRISTO". Com tal frase à minha frente foi que prosseguimos com as nossas carícias e foi estranho ter que beijar tal frase tantas vezes quando eu só queria beijar seu peito...
Ao virá-lo para me deitar sobre suas costas - pensando, no íntimo, em me livrar de ter que beijar aquela frase de novo, deparei-me com outra igual: "SOLDADO DE DEUS"...
Parei. Li de novo. Segurei o riso nervoso. Relaxei. Deixei meu corpo colar em suas costas novamente e beijei cada letra daquela frase. S O L D A D O   D E  D E U S ...
Suspirei... Oh, meu soldado...
Nunca pensei em religião durante o sexo. Nem se era pecado ou não ou se Deus estaria assistindo ou não...Essa foi a primeira vez, diante daquele homem tatuado de fé...Não consegui desligar. Ao abraçar, estava abraçando o soldado de deus. Ao beijar, estava beijando o soldado de cristo...
De frente, de costas...
De costas, de frente...

Soldado de Deus...
Soldado de Cristo...
Soldado de Deus...
Soldado de Cristo...
Como um mantra...Repetido tantas vezes que até eu já estava me sentindo um soldado de deus...Eu sou um soldado de deus. Eu sou um soldado de cristo...Oh, meu soldadinho...


domingo, 5 de maio de 2013

Onde...?

Não sei quando o perdi de vista.
Foi talvez dobrando uma esquina...Minha mente levantou um rápido vôo e ao retornar não estava mais lá. Corri de qualquer jeito, como se tivesse a certeza de que tinha sido naquela esquina - mas quando cheguei lá, com o coração já saltando pela boca, não havia ninguém que eu esperasse.

No amor, quando pensamos perder uma grande oportunidade, a mente se torna fértil em produzir arrependimento sobre tudo o que não teria sido feito.

A rua caiu por mim adentro com todo o seu caos de gente e carro. Os rostos desconhecidos e conhecidos se tornaram indiferentes e a minha ansiedade de ver somente um rosto é um peixe num minúsculo aquário - a ele é dado ver em todas as direções e não tomar nenhuma...

A rua se acendeu e se apagou em um segundo de pensamento em desvairio e quando o cansaço me permitiu olhar em volta, estava escuro e sem ninguém - a não ser um esmoléu aos meus pés com a mão estendida.

A rua se apagou e com ela a minha esperança e todas essas portas fechadas não são senão a metáfora de tudo isso.

Queda

Quando se cai lentamente, há, na lentidão, tempo para ensaio. Na queda lenta ainda opera um certo senso de dignidade - que, às vezes, tende vertiginosamente para a teatralidade e para o gesto calculado. O olhar daquele que cai percorre a paisagem e observa quem o observa. E, no perceber do olhar certo, se estende o palco para a sua próxima cena.
Quando a queda é rápida, já não há mais tempo. A perda do senso do ridículo frutifica sobre a dignidade em pedaços. Na face, as caretas espontâneas se formam em espasmos, as rugas, a boca aberta sem cuidado, o movimento randômico dos olhos, a cabeça sem descanso. As palavras saem, por vezes, mais sinceras que diplomáticas - pois que, enfim, perde-se o senso de diplomacia.
A ação desesperada e sem tempo de maturação dispara balas aleatórias, as quais estarão para o acaso decidir se acertarão algo que poderia ter sido um alvo.